Poema-instalação de Moirika Reker e Gilberto Reis, patente no Aqueduto de S. Sebastião - Bienal ANOZERO Coimbra, inaugurado em 2015. Fotografia de Jorge Neves
“Escutai! Um vento morreu. Não vos dais conta? Somos jardineiros e não flores.”
Esta instalação, presente na zona dos arcos do jardim em Coimbra desde 2015, sempre me surpreendeu. Vinda do evento emergente Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra – ANOZERO, esta peça de arte pública repara o lugar da existência humana numa existência espacio-temporal de intenção, propósito e impacto.
Quando reparamos nesta instalação, olhamos a sua integração no Aqueduto de S. Sebastião e a continuidade com o Jardim Botânico da Universidade de Coimbra, onde a imponência da natureza no seu esplendor, e o valor de vida dela extraído, ditava a sua importância e o da sua conservação.
E hoje, como habitamos o mundo?
Em consciência, será que vivemos como se ao nascer tivéssemos ganho o direito a existir, ou assumimos com o nosso nascimento, o dever e responsabilidade de cuidar, do nosso lugar físico, emocional e interrelacional neste mundo?
A preservação da vida baseia-se numa relação simbiótica de transformação ser-humano e natureza, onde a nossa atuação pressupõe uma relação de dupla transformação. Transformamos a natureza com a nossa presença e a natureza transforma-nos por dela fazermos parte. Falamos de significados, falamos de tempo e do propósito do esforço que aplicamos, o que chamo trabalho numa aceção mais ampla. Falamos de consciência.
A atualidade é efervescente na discussão sobre o sentido do trabalho e do tempo. Se, por um lado o trabalho permite a construção de uma identidade pessoal e social, a partir de uma identificação com o que se realiza, à geração de valor capaz de transformar e providenciar outros recursos e pela inserção num grupo; quando este se escala e se baseia na divisão de tarefas parecemos tender para a fragmentação e despersonalização. Quando assistimos à divisão e segmentação do trabalho, passamos a ignorar o sentido do trabalho, a falta de sentido na tarefa individual e o desconhecimento do sentido da tarefa coletiva. Cria-se uma forma de divisão e separação das pessoas, segregação e competição, com todo o sofrimento psicológico associado, e o trabalho deixa de dignificar. Para progredir arranjamos formas de atenuar este sofrimento, de aceitar o non-sense de tarefas invisíveis e baseadas em objetivos, afastadas do processo de transformação das coisas, das quais retiramos apenas a recompensa de as ter concluído, e das quais pouco compreendemos o propósito.
Aceitamos esta forma como transformámos a natureza, assumimos o caráter narcísico deste ato e vamos gerindo o sofrimento de, conscientemente, estarmos a infertilizar as relações pessoais, a sociedade - a modernidade. Nesta aceleração dos tempos e na necessidade de progredir, dar estatuto e providenciar, mecanizámos, digitalizámos, dividimos, especializámos e com isso progredimos numa ideia de modernidade que poucas pessoas conseguem justificar. Descobrimos necessidades, produzimos itens e hoje sofremos porque não conseguimos eliminar os resíduos do nosso egoísmo, sem produzir mais resíduos.
Nesta modernidade ascendente assistimos a uma crise de sentido, em relação ao uso do tempo, à noção de produtividade - a quem serve, a bullshit jobs, ao significado do trabalho no seu propósito, ao objeto do trabalho, ao valor do dinheiro, e ao questionamento da nossa relação com a vida, com os ciclos da natureza e com ciclos das coisas. E insurge-se a manualidade, a satisfação despretensiosa, a sanação e a completude na competência manual, trabalho de escala humana, dignidade sem necessidade de justificar o seu valor. Eterno retorno, a natureza. Afastamento do intangível associado ao mundo tecnológico, da gestão, da incerteza e da eficiência, e depois a busca do compromisso com a vida, com valores de preservação comuns, cura na exploração da criatividade e do potencial humano em comunhão com a natureza - o surpreendente concreto, a descoberta da pertença. Ressignificamos o sentido do nosso esforço num novo contexto histórico, económico, ecológico e social e questionamos como produzir esta equilibrada relação simbiótica que sustenta a existência humana, a relação fundamental ser-humano, natureza e o lugar do nosso trabalho, como guardião da vida, na sua plenitude.
E qual é a nossa postura, o nosso compromisso?
Sou flor quando sobrevivo efémera, recolho os frutos das circunstâncias numa existência superficial, confusa de sentido, significado alheado. Sou flor quando estou ausente, descomprometida, de vivência irrefletida, quando aceito o status quo, na monotonia e na melancolia.
Sou jardineira, guardiã da vida, quando estou consciente, a trabalhar-me, e pôr-me ao serviço do que conheço ser o sentido maior. Quando me envolvo no cultivar de relações, competências, conhecimentos, quando direciono o meu esforço e dedicação a fim de atuar na atualidade, nas mentalidades, na descoberta da criatividade, dignidade e felicidade humanas. Sou jardineira, quando trabalho ativamente na construção e desenvolvimento do mundo em que quero viver, com trabalho que é significado de ação intencional, cuidada, consciente, comprometida, responsável em trabalhar a dimensão humana, a comunidade e a dimensão ecológica de preservação da vida e da comunhão com a natureza.
Ser jardineir@ hoje é literalmente voltar à natureza, recuperar a escala humana nas coisas, e ainda ser positivamente surpreendido pela grandiosidade do impacto da natureza na nossa saúde física e mental. Estar consciente neste eterno retorno.
Que saúde mental possa ser olharmo-nos no mundo, não como seres isolados e autocentrados, mas podermos estender-nos além de nós, descobrindo e acolhendo a nossa história pessoal, num sentimento de pertença, interligado, conectado e a realizar o querer ser, estar e atuar no mundo.
Dia 10 de Outubro celebra-se o Dia Mundial da Saúde Mental - que possamos reparar (duplo sentido: observar e consertar) no mundo para curá-lo.
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Dejours, C. (1980) A loucura do trabalho. Estudo da psicopatologia do trabalho. 5ª ed. São Paulo, Oboré.
Graeber, D. (2019) Bullshit Jobs: a theory. New York, Simon & Schuster Paperbacks
Crawford, M. (2010) Shop Class as Soulcraft: An Inquiry into the Value of Work. New York, Penguin Group.
https://geral.anozero-bienaldecoimbra.pt/
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